sábado, 16 de maio de 2009

Recortes de uma notícia que não sai.

Recortes de uma notícia que não sai.
Joana se embriagava a todo vapor. A cerveja não fora suficiente e havia ido à venda do Seu Ivanor comprar cachaça. Era o antídoto perfeito para o veneno que circulava em seu sangue desde a primeira tentativa.

Ao voltar para sua casa, pensamentos sombrios que há muito atormentavam sua mente penetravam uma vez mais em seu corpo anestesiado pelo álcool. Dessa vez queria morrer.

Convicta de sua trama, entrou no pequeno barracão e tratou de fechar logo todas as janelas e portas. A escuridão rapidamente tomou conto da recinto. Só foi minimizada quando a faísca de um fósforo riscou o breu como um raio e acendeu uma vela no interior da sala. Guiada pela luz, tratou de ligar o rádio para disfarçar qualquer barulho que viesse a cometer. Agora, nada podia dar errado.

Após cuidar para que ninguém atrapalhasse o processo, deu início aos preparativos de sua glória particular. Deixou a garrafa de cana sobre a mesa da pequena sala e se dirigiu para o quarto.

Abriu a porta do pequeno espaço com extrema cautela para não mais fechar. Sabia do estampido que a velha madeira da porta produzia ao encostar-se ao chão desnivelado. De tão determinada, acreditava que o mínimo barulho pudesse despertar a atenção dos vizinhos.

Adentrou e viu a cama de casal que ocupava quase todo o espaço. Lembrou de cada momento de êxtase e paixão que tivera ali. Uma lágrima desceu dos seus negros olhos e rapidamente se transformou em um rio caudaloso.

Deitou na cama e esmoreceu! Novamente estava aos cacos por causa de um tal João. Duas semanas antes, após dois anos de uma relação ardente, Joana descobriu que João havia lhe trocado por uma mulher mais nova. E descobriu da pior maneira possível.

Trabalhava como empregada doméstica em um apartamento no bairro das Laranjeiras e morava com João em um barraco simples, no alto do Morro Dona Marta, em Botafogo. Apesar da precária habitação e da vida difícil na favela, Joana orgulhava-se e admirava todos os dias uma das mais belas paisagens da cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro.

Do alto, avistava uma cidade ainda maravilhosa.

A sua frente, a formosa montanha do Pão de Açúcar deitada eternamente sobre a Guanabara. As aves marinhas, o céu de anil e os barcos na enseada completavam o cartão-postal.

Ao fundo, o Redentor continuava de braços abertos, recebendo e perdoando todos os pecados cometidos na cidade. Ao cair das tardes, o Astro-Rei posiciona-se atrás da estátua do Cristo, formando, quase que milagrosamente, uma coroa de luz. Ele é o senhor dessas bandas.

Todavia, Joana sabia que nem tudo eram flores no cenário. A maravilhosa cidade também possui seu lado obscuro. O olhar profundo da personagem facilmente percebe que a maior floresta urbana do mundo, a da Tijuca, está sitiada pelo caos.

A degradação e a destruição das verduras tropicais são evidentes e não têm classe social.

De um lado os espigões, veículos e mansões da classe dominante, que destroem suas vidas e a preciosa floresta com um consumismo infindável. Do outro a miséria avança desenfreadamente sobre a Mata Atlântica. Junto com os barracos, multiplicam-se os problemas e os grupos de poder paralelo que tanto ameaçam a maravilha. Joana também sabe disso.

Como trabalha há dezesseis anos para uma família de intelectuais – seu patrão é escritor e sua patroa é produtora musical – Joana é apaixonada pelos livros e pela música. Sua condição cultural contradiz sua condição social.

No seu quarto apertado, na parede ao lado da cama de casa, havia uma prateleira com sua coleção de CDs sobre música brasileira e seus livros de poesia, que havia recebido de seus chefes. Vinicius de Moraes era seu poeta favorito. E é para esse balcão suspenso que Joana lançava seus olhares de morte naquele momento.

Ainda deitada, Joana estava aos prantos. Afogava-se na dor, nadando na imensidão da cama de casal vazia. Sabia que o lar não mais existia, agora, era só mais uma casa alaranjada do Morro Dona Marta.

Contudo, ao lembrar do fatídico dia, a raiva tomou conta de seu corpo novamente. Lembrava da cena que vira duas semanas atrás.

Eram seis horas da tarde. Joana havia saído cedo do trabalho e caminhava de volta para seu lar. Pensando em fazer um jantar especial para seu grande amor, João, passou na venda do Seu Ivanor e comprou os ingredientes mais frescos para a surpresa.

Ao abrir a porta da casa, suas sacolas caíram no chão. Flagrou João e uma mulher fazendo sexo explícito na cozinha do barraco. A sirigaita de pernas abertas sobre a pia encardida, João no meio dela. Joana gritou.

Seu grito de dor ecoou forte pela favela. Chamou a atenção da vizinhança e espantou os bem-te-vis de seus ninhos.

Enfurecida, ela não hesitou. Pegou a grande panela de feijoada sobre a pia e deu com força na cabeça de João, que foi à lona, aparentemente desacordado. Naquele momento estava frente a frente com a sirigaita que jamais havia visto.

Sua raiva transbordava de seu corpo e não queria saber de detalhes. A amante, pálida como um fantasma, tentou fugir pela pequena janela da cozinha. Joana não deixou. Atirou uma faca nas costas da traidora que, ao sentir o ferro entrando em sua carne, imediatamente desistiu da fuga. Joana estava decidida a matá-la.

Pegou o facão de peixe e foi na direção da outra. Ao se aproximar com os dizeres de que mataria a mulher, Joana sentiu um puxão forte em seu calcanhar e foi ao chão. Era João que havia puxado. A situação se inverteu. João se levantou e começou a espancar sua esposa.


Pediu ajuda da amante ainda ferida, chamando-a pelo nome: Gisele. Os amantes espancaram Joana sem dó: seus longos cabelos negros foram cortados pelo fio afiado da peixeira; sua pele foi queimada pela ponta da faca. Para finalizar, João disse que não mais a queria, estava determinado a ficar com Gisele que ainda tinha a energia e o vigor característicos da juventude.

João fez um curativo na ferida de Gisele e tomou um remédio para dor de cabeça. O novo casal colocou suas roupas e saiu do barracão o mais rápido possível.

Humilhada, Joana foi levada ao hospital pelos vizinhos e ficou internada por 3 dias. Apesar de ter sido incentivada por amigos, decidiu não prestar queixa na delegacia, pois além de ter iniciado o ataque aos amantes e quase ter matado a sirigaita, Joana amava demais. Ainda tinha esperança de voltar para seu grande amor.
Todavia, duas semanas se passaram e João nem ao menos a procurou para pedir desculpas ou lhe dizer algo. Joana enlouqueceu. Tentou de todos os meios esquecer João, mas era impossível.

Enclausurada no pequeno barraco, mergulhou profundamente em seus livros de poesia como salvação. Em uma bela tarde de sol, ao ler um poema de Vinicius, encontrou a salvação para sua vida: a morte.

Após lembrar de toda a humilhação, traição e agressão que sofreu, Joana repentinamente se levantou da cama mais decidida do que nunca. Enxugou suas lágrimas com força: agora, havia um brilho estranho em seus olhos.

Pegou a vela que, apesar da tempestade emocional que acometeu Joana, ainda estava acesa. Dirigiu-se para a prateleira onde ficavam suas coleções e começou a procurar. Mesmo com a chama, estava difícil identificar exatamente o que estava procurando.

Depois de examinar livro por livro e CD por CD, achou o que queria. Joana seguia com a vela em sua mão esquerda e carregava o livro e o CD escolhidos com sua mão direita. Saiu do quarto e fechou sua porta para não mais abri-la, naquele momento, nem mesmo o estampido poderia atrapalhar, pois apenas poucos minutos a separavam de sua glória.

Entrando na sala, colocou o livro e o CD ao lado da garrafa de cana sobre a mesa. E foi para a cozinha pegar o que precisava. Não quis se estender naquele ambiente, a dor era forte. Apressou o passo.

Joana pegou o que precisava e retornou à mesa da pequena sala. Deu mais dois tragos da cachaça.

Inseriu no CD player o CD preferido da sua coleção. Era o de Chico Buarque com Maria Bethânia ao vivo, colocou diretamente a faixa oito para tocar. Era “Notícia de Jornal”. A música que havia escolhido desde de que planejou sua trama.

Com a trilha sonora ao fundo, pegou o bloco de anotações e rasgou uma folha, onde escreveu um pequeno bilhete. Dobrou o papel e o colocou dentro do seu sutiã.

Joana deu um último trago na cachaça e colocou a garrafa sobre o livro que estava em cima do balcão. Pegou a mesma faca peixeira que tentou matar Gisele e apontou para o seu pulso. Olhou para a janela, pediu desculpas ao Redentor e cravou a peixeira em seu pulso. E sangrou.....

Essa era sua glória particular que havia planejado meticulosamente. Quando os peritos chegaram, encontraram o rádio ligado (mas mudo) e uma mulata de negros olhos sem um dos seus pulsos. Além de uma lagoa de sangue, uma faca de peixe e uma vela ainda acesa.

Também havia um livro de Vinicius de Moraes (“Para viver um grande amor”) debaixo de uma garrafa de cana, ainda com umas duas doses. Nada fazia sentido.

Ao fazerem a perícia no corpo, encontraram um pequeno bilhete entre os seios da vítima. E nele estava escrito: “Que não seja imortal, posto que é chama. Mas que seja infinito enquanto dure”. E repentinamente tudo passou a fazer sentido....

obs: a pulada de linha representa o parágrafo, entretanto, depois de editar milhões de vezes, em alguns casos o eblogger não pula a linha. É incrível seu apetite por elas.

3 comentários:

  1. Adorei! Joana, mais uma vítima dos resquícios de uma cutura ultra-romântica que identificamos nas canções de Chico e nas poesias de Vinícius. Mas uma brasileira que caiu na armadilha do ciclo vicioso do amor e da dor. Gostei do seu jeito sutil para falar de assuntos sócio-econômicos, vinculados a realidade carioca. Perabéns pela sensibilidade! Um cronista-poeta!

    ResponderExcluir
  2. Bravo!

    Um dos melhores contos que já li.
    Isso daria até um curta.

    abraços de curitiba

    Julia Santos

    ResponderExcluir
  3. realmente está de parabéns
    excelente.

    ResponderExcluir