terça-feira, 9 de junho de 2009

Nkosi Sikelel' iAfrica.








Seu nome era Kayaletho, nascido e criado em solo africano. Filho da África, mais precisamente das colinas verdejantes do Transkei, então um Estado independente segregado pelo regime racista do Apartheid na África do Sul.


Era primavera do ano de 1964. A noite cantava suas melodias da estação que recém-chegara. Os insetos com suas guitarras psicodélicas, os sapos com suas percussões incessantes e o silêncio estrondoso dos pequenos pássaros anunciavam o que estava por vir. As cobras recém-saídas de seus buracos chacoalhavam seus chocalhos e, lá do alto, as aves de rapina rasgavam o céu e com seus faróis vasculhavam as sombras. Seus botes fatais representavam o fim de suas presas e, paradoxalmente, davam continuidade ao ciclo mágico natural da vida.


Uma lua mais-que-cheia beijava as águas do Índico. Sua bola de fogo paralela inicial deu lugar a uma paixão fugaz porém intensa. Iluminava o azul do mar infindavelmente, como que sabendo que quando a aurora chegasse sua relação acabaria. Oferecia tons prateados aos sopros das baleias jubartes e suas crias, frutos do último inverno que se encerrara. As centenas de golfinhos celebravam a noite e a fartura, pois as sardinhas por aquelas águas ainda corriam aos milhares, num dos fenômenos mais grandiosos da mãe Natureza. A comida era tanta que os tubarões da morte completavam a ceia, dividindo a comida com seus inimigos cetáceos declarados.


Sem dúvida aquela noite era especial. Tudo parecia ordinariamente comum, mas o extraordinário ainda estava por vim.


No vilarejo de Mpande, do alto de uma colina à beira-mar, dentro de uma tradicional oca Xhosa estava Lindela na posição da luz. Pernas estiradas, abertas em quase 90º graus esperando pela primeira etapa do ciclo da vida: o nascimento. A seu redor estavam seu fiel marido Melisizwe; a parteira local com uma ajudante; e mais duas sangomas, feiticeiras típicas da região em que as pessoas acreditavam poderes sobrenaturais e milagrosos.


Melisizwe era líder de todo o vilarejo de Mpande. Sua inteligência aliada ao vigor físico forjou uma pessoa respeitada por toda a comunidade e, naturalmente, ele foi escolhido para guiar o vilarejo. Convocando os mais jovens para ampliar as plantações de milho e os ensinando a pescar, levou uma fartura nunca vista para seu povo.


No entanto, uma terrível seca no ultimo verão destruiu todo o milho e impediu a comunidade de armazená-lo para o inverno. Para piorar as coisas, no começo da estação da escassez, o patriarca foi fisgado por uma pneumonia que quase o matou. Seus únicos desejos enquanto esteve enfermo foi de ver o nascimento do seu segundo filho e a recuperação de seu primeiro, que sofria de inanição devido ao tempo das vacas magras. Muitos acreditam que foram esses anseios que serviram de combustível para não ultrapassar a tênue linha que separa a vida da morte.


De fato, foi um inverno muito rígido que levou consigo muitas almas daquele povo simples, mas que continuadamente insistia em lutar pelos seus destinos. Apesar de muitos fatos sombrios terem se passado no período, voltemos a aquela noite especial de primavera.


Do lado de fora da oca, o único filho de Lindela brincava com a fogueira, Nkosane, o príncipe, era seu nome. Tinha apenas dois anos e se recuperava da inanição que quase o levara a morte no começo do inverno. Seu pai, Melisizwe, estava impedido de pescar por uma pneumonia, e a ausência de alimento comum à estação do frio foi o primeiro grande desafio vencido por ele. Porém, a chegada da primavera e a recuperação de seu pai trouxeram de volta a fartura e com ela, Nkosane recuperava-se vigorosamente.


Além do menino, toda a vila se encontrava ao redor da maloca. As mulheres negras rezavam preces ao Senhor enquanto os homens dançavam as orações e batiam forte no tambor Xhosa. Todos em uníssono, como que estivessem falando ao pé do ouvido do criador para que trouxesse o segundo filho de seu líder com saúde. Não se sabia se era homem ou mulher, mas não se importavam, pois o primogênito já havia nascido e passava bem.


Depois de duas horas de trabalho de parto, o clima estava cada vez mais tenso. A luz ainda não havia sido dada, pois a criança estava em posição lateral. Lindela apertava forte a mão de Melisizwe. Apesar de estar agoniada pela dor dos pés da criança batendo em suas vísceras, ainda forçava suas contrações na esperança natural de forçar a saída do sangue do seu sangue. Seus gritos ecoavam pelos campos cada vez mais verdejantes e traziam preocupação a todos da comunidade.


As sangomas temiam pelo pior, a morte da criança e de sua mãe, o que muitas vezes acontecia na região. A vida nunca foi fácil naquelas bandas. A parteira e sua ajudante sentiam-se impotentes, nunca viram uma posição tão imprópria para o parto natural como aquela. Elas estavam exaustas, e com isso as chances de sobrevivência do fruto e de sua árvore eram cada vez mais difíceis.


Repentinamente, ouve-se um canto muito especial vinda de fora. Era a oração máxima de todo o povo Xhosa, Nkosi Sikelel' iAfrica, que com o fim do Apartheid foi adotada como hino nacional da África do Sul.

Nkosi Sikelel' iAfrika
Maluphakmis' uphondo lwayo
Yizwa imithandazo yethu
Nkosi sikelela, Thina lusapho Iwayo
Morena boloka Sechaba sa heso
O fedise dintwa le matswenyeho
Morena boloka sechaba sa heso
O fedise dintwa le matswenyeho
O se boloke, o se boloke
O se boloke morena, se boloke
Sechaba sa heso, Sechaba sa Afrika
Nkosi Sikelel' iAfrika
Maluphakmis' uphondo lwayo
Yizwa imithandazo yethu
Nkosi sikelela, Thina lusapho Iwayo
Wosa Moya, Wosa Moya
Wosa Moya, oyingcwele
Nkosi Sikelel
Thina lusapho Iwayo.

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Senhor, abençoe a África!
Que o espírito dela se erga
Ouve também nossas preces
Senhor, abençoa-nos
A nós, a família africana
Senhor abençoa nossa nação
Faça cessar as guerras e os sofrimentos!
Salve-a! Salve-a!
Mantenha-a livre! Salve-a!
Nossa Nação
A Nação africana!
Vem espírito! Vem espírito!
Vem Espírito Santo
Senhor abençoa-nos
A nós, a família africana!


As vozes foram aumentando e os batuques também. Todos cantavam o som com o coração de suas almas, como que a última cartada para que um milagre acontecesse. E ele aconteceu. Como que por mágica ouve-se um estrondoso grito de pranto soando no ar. A sinfonia animal cessou; o frenesi alimentar nas águas do Índico parou; o tambor Xhosa, as orações e as danças histéricas também.


O único som era do pranto desesperado de um menino que achou que não veria a luz. Mas ele viu. Kayaletho era seu nome, que na língua daquele povo significava nossa casa. Alguns segundos emudecidos passaram-se, mas, logo depois, os sons daquelas terras e de seus animais voltaram ainda mais fortes: dessa vez para celebrar a continuidade do ciclo mágico natural da vida!

3 comentários:

  1. Que lugar lindo.. adorei a matéria, está de parabens... um abraço leandro !

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  2. AMEIIIIII a matéria!!
    A forma [maravilhosa]como descreveu a história nos aproxima com a cultura africana!!
    Parabéns!!

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  3. Nossa...
    Esse lugar deve ser mágico.
    E tu tens mesmo talento com as palavras guri.
    Beijos,
    Luna

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